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domingo, 4 de setembro de 2011

O dramático diagnóstico da ELA

A doença da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) assusta o mundo pela avassaladora destruição do organismo em poucos anos e a comunidade científica se mobiliza para buscar sua cura

Rachel Costa
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"De repente, tudo caía das minhas mãos”
Guia de Ogum no pescoço e na constante companhia da irmã Cibele e da mãe, Nice, assim vive o professor paulista Edgard José
de Oliveira, 50 anos. Ele apenas balbucia palavras. Com supremo esforço e numa prova de superação, deu o seguinte depoimento:
“Foi tudo muito rápido. Senti o primeiro sintoma quando fui nadar e não consegui juntar os dedos da mão esquerda. Alguns meses depois tive dificuldades para mover o braço. O terrível diagnóstico demorou dois anos e meio, mas eu já estava de certa forma preparado para a ELA, sabia que podia ser esse o meu problema. A forma como a paralisia se espalhou pelo corpo foi assustadora. De repente não conseguia mais escrever e todo objeto que tentava segurar caía das minhas mãos. Veio a cadeira de rodas. Aprendi a me adaptar às mudanças. Hoje sei que a ELA pode até me matar, mas vai ter de brigar muito. Sou chato com a doença”.

Ela, a morte, se faz anunciar nas mais diversas enfermidades em diferentes graus de sofrimento. Ela, a morte, se faz anunciar da forma mais devastadora e no grau mais arrasador quando a doença se chama Esclerose Lateral Amiotrófica – que numa terrível coincidência tem por sigla justamente a palavra ELA. Pacientes e médicos gelam diante de tal diagnóstico, inaceitável porque ele aponta para um único prognóstico: a morte inexorável e por demais sofrida. Assim, receber a notícia de ser portador de ELA é receber nas mãos, sem apelação a Deus ou à ciência, uma sentença de morte. Ao doente, primeiro vai-lhe faltar força muscular para os movimentos mais simples: segurar uma caneta, fechar um zíper, apertar a válvula sanitária, abraçar um filho. Antes disso, ou logo depois dessas manifestações, podem ocorrer também quedas do nada – está-se andando e, de repente, desaba-se. Em poucos meses, a ELA evolui à paulatina e desesperante perda da fala, e ocorresse essa perda abruptamente seria menos chocante do que acontecer por etapas: dificuldade de pronunciar algumas palavras, depois um balbuciar, na sequência um emitir de grunhidos, finalmente a ausência de qualquer som e do mexer dos lábios – com muita saliva escorrendo pelo queixo. Aí vem a impossibilidade de andar, a cabeça insustentável para um pescoço que parece feito de mola, restando ao enfermo somente o movimento dos olhos – com o corpo paralisado, são eles, os olhos, que se tornam mais vivos e inquietos, até porque é através deles que o doente tenta expressar o que lhe vai pela mente. E como fica o cérebro em tudo isso? Como o condenado à morte que caminha lúcido para o patíbulo, o portador de ELA mantém-se com o raciocínio claro. Ele sabe tudo o que está acontecendo porque somente os neurônios que comandam nervos e movimentos se degeneram.
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Imóvel na cama. Pouco consegue piscar. Mal fala. Respira por aparelhos e se alimenta através de sonda. O paulista Maurílio Pereira, 52 anos, adorava sentir o sabor dos alimentos. Com a perda da capacidade de deglutição, abateu-lhe a depressão: “A última coisa que comi foi uma musse de maracujá. Há dois meses não consigo mais engolir nem a saliva. Desde que começaram os problemas mais sérios de deglutição, também está mais difícil conversar. Quem me dá forças para seguir é minha mulher, a Cida. Estamos casados há 27 anos e ela me motiva a continuar vivendo. Com o tempo, estou mudando o modo como enxergo a ELA: antes a expectativa pela descoberta da cura era maior. Agora, embora não tenha exatamente aceitado a doença, estamos aprendendo a conviver com ela. Dei a mim uma nova função: dar conforto às pessoas e lhes mostrar que elas devem ser felizes, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo.”

Falou-se em caminhar rumo ao patíbulo. Pois bem, esse trajeto dura em média de três a cinco anos (a partir dos primeiros sintomas) quando então todos os músculos do corpo se petrificam e ela, a morte, finalmente vem sob a forma de parada respiratória. Hoje há no Brasil cerca de 14 mil pessoas vivendo esse drama e, no mundo, são aproximadamente 400 mil os que desenvolveram a doença. “Falar a um indivíduo que ele tem ELA é terrível, pois pouco temos a fazer diante da rápida progressão da enfermidade”, diz o pesquisador americano Walter Bradley, da Universidade de Miami, nos EUA.

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Sabe-se que a Esclerose Lateral Amiotrófica é uma doença neurodegenerativa causada pela morte dos neurônios motores, os responsáveis pelo comando da musculatura esquelética. O que não se sabe, porém, é quando a medicina chegará à cura. Hoje, trata-se a doença com intervenções que pretendem diminuir o o desconforto do paciente. Nessa direção há, por exemplo, fisioterapias, uma vez que sem elas o corpo definha ainda mais rapidamente. No campo dos remédios, existe uma substância que tenta proteger os neurônios, o riluzol, cuja eficácia pode ser comparada à de tentarmos nos aquecer vestindo uma camiseta de manga curta sob uma temperatura de 30 graus negativos. Essa carência de remédios leva à seguinte situação: ao contrário de outras doenças graves para as quais se prescrevem medicamentos pelo seu efeito principal, no caso de ELA a medicina se vale dos efeitos colaterais e indesejados. Por exemplo: antidepressivos que secam a boca são úteis porque inibem a excessiva salivação. Quase nada mais tem-se a fazer, a não ser interromper todos os procedimentos quando a morte já se prepara, mesmo, para deitar-se com o enfermo. Cessam-se as intervenções, aplica-se teoricamente o conceito de morte digna e, praticamente, a sedação endovenosa.

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Em 10 de janeiro de 2010 veio o diagnóstico fatal: Esclerose Lateral Amiotrófica. Desde então o artista plástico de São Paulo José Carlos Alface, 55 anos, trava uma luta infernal contra a gradual paralisia. “Entrei em desespero quando soube que tinha a doença. A sensação que me invadiu após o diagnóstico foi a de ter ganhado uma loteria ao contrário: entre milhares de pessoas, eu fui o escolhido para ter ELA, para perder meus movimentos e conviver com a morte. Meu pescoço está frágil, o que me obriga a usar um apoio para a cabeça enquanto pinto. Não gosto de pensar no que vem pela frente: cadeira de rodas, cama, imobilidade total, morte. Vivo cada dia como se fosse o último.”

A doença demanda médicos bem qualificados (são muitas as comorbidades, sobretudo infecções), nutricionistas, psicólogos, fonoaudiólogos, enfermeiros noite e dia, equipamentos de respiração e ventilação dos pulmões, programas especiais de computador que ajudem na comunicação. A rotina de todos, doente e cuidador, é estafante: a vida social acaba, o repouso noturno é trocado pela vigília constante, surgem momentos de profunda depressão. Mas, como em tudo na vida, é nos momentos em que ela parece mais frágil que o desânimo dá lugar a lampejos de esperança. “O paciente se entristece, mas tira forças de quem está ao seu lado”, diz a psicóloga Vânia de Castro, do Setor de Investigação em Doenças Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), referência no tratamento de ELA no Brasil.
“Temos uma oferta mínima de profissionais capacitados”, diz Sílvia Tortorella, diretora do Instituto Paulo Gontijo, uma das instituições brasileiras que financiam pesquisas sobre a moléstia. “Há uma complicação imensa para a realização do diagnóstico.” Em geral, o indivíduo peregrina um ano de consultório em consultório, de laboratório em laboratório, até que a doença seja identificada em diagnóstico por exclusão: quando não se comprova nenhuma outra possibilidade, é porque de fato é ELA. “É muito tempo, principalmente se considerarmos que o período de vida médio é de três a cinco anos”, diz o professor de neurologia Acary Souza Bulle Oliveira, responsável pelo centro de referência da Unifesp. Contam para essa demora diversos fatores. Para começar, poucos médicos conhecem bem a doença. Depois, há escassez de recursos tecnológicos apurados. Para fazer exames pelo SUS (eletroneuromiografia é crucial) o doente tem de esperar cerca de um ano. Há mais dificuldades. O serviço de fisioterapia em casa, essencial quando a paralisia se agrava, não é oferecido pela rede pública e são poucos os planos de saúde que o contemplam. Na verdade, na busca por mais direitos, os pacientes travam uma batalha desigual. A representá-los existe a Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica, que faz o que pode mas não tem força política. Já em Brasília não há sequer um parlamentar que brigue por esses doentes.

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Fontes: Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (Abrela); Manuais de Exercícios Domiciliares para Pacientes com Esclerose Lateral Amiotrófica (Ed. Manole: 2001); Cristina Salvioni, nutricionista do ambulatório de ELA da Unifesp; Simone Gonçalves, fisioterapeuta respiratória do ambulatório de ELA da Unifesp; Acary Souza Bulle Oliveira, médico responsável pelo setor de investigação em doenças neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Francisco Rotta, médico especialista em neurofisiologia clínica e neurologia
 
Assim como ocorreu com o câncer e a Aids – enfermidades cujos diagnósticos representavam a morte e que hoje são, na maioria dos casos, controláveis –, o que se espera é que a ciência também golpeie a Esclerose Lateral Amiotrófica. Tanto é assim que, desde 1869, quando o médico francês Jean Charcot descreveu pela primeira vez as características essenciais da doença, avançou-se no conhecimento. Disseca-se aqui o nome desse mal: esclerose (endurecimento), lateral (porque começa por um dos lados do corpo), amiotrófica (porque atrofia os nervos). “Em 1990 conhecíamos seis processos envolvidos no seu desenvolvimento”, diz o médico Francisco Rotta, da Academia Brasileira de Neurologia. “Hoje conhecemos mais de 20 fatores e 12 genes.”
Para o futuro, a grande esperança são as pesquisas com células-tronco, estruturas versáteis capazes de se transformar em qualquer tecido do corpo. O que se quer é usá-las para criar neurônios motores e implantá-los no lugar dos que estão “apagando”. Nos EUA, cientistas conduzem o primeiro estudo clínico daquele país para avaliar a eficácia de tais métodos e, no mês passado, anunciaram que, devido aos resultados observados nos três primeiros pacientes, tal procedimento é seguro. A cientista Svitlana Garbuzova-Davis, da Universidade do Sul da Flórida, estuda outra abordagem: testa o poder de frações de células tiradas do cordão umbilical onde estão contidas células-tronco. Elas são extraídas e injetadas em cobaias. Numa primeira etapa verificou-se a eficácia em ratos programados para desenvolver a doença, mas que não apresentaram sintomas. “Houve significativo retardo no surgimento e progressão dos sinais”, diz ela. Depois, em testes com animais que já manifestavam sintomas, constatou-se melhora no funcionamento motor.
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Há ainda um esforço mundial em busca de opções na área de medicamentos. Uma das drogas em estudo é o tamoxifeno, indicado para câncer de mama, mas que parece proteger os neurônios. A outra é a memantina, utilizada em portadores de mal de Alzheimer. Na Europa 15 centros iniciaram testes com 500 pacientes para verificar o desempenho da substância olesoxime, que atua na mitocôndria (central de energia das células), já que uma das muitas alterações que ocorrem na ELA é a degeneração dessa estrutura. O mesmo objetivo está sendo perseguido nos EUA pelo Massachusetts General Hospital Medical School, que analisa a performance de outra molécula (a KNS 760704) na proteção às mitocôndrias. Considerável parcela de pesquisadores volta-se também para os astrócitos, células em forma de estrela envolvidas na nutrição dos neurônios – se for possível fortalecê-las, ajudarão a impedir a sua destruição. “É uma aposta que pode ajudar a tratar a doença”, diz Sam Pfaff, cientista do Howard Hughes Medical Institute.
Outros grupos querem decifrar a gênese da ELA. Empenham-se em descobrir, por exemplo, as razões que levam à estranha agregação de proteínas sobre os neurônios, gerando-lhes uma toxicidade fatal. Na Inglaterra a cientista Jaqueline de Belleroche assegurou que “existe forte influência genética no desencadeamento desse mecanismo”. Também nessa mesma direção, a responsabilidade do sistema imunológico tem sido esmiuçada. “É o nosso novo alvo”, diz a geneticista Michal Schwartz, do Instituto Weiz­mann, em Israel. Ela concluiu que o mau funcionamento imunológico está associado à enfermidade. Hoje irre­mediavelmente fatal, como se vê a ELA se tornará com certeza uma doença tratável, já que renomados cientistas empenham-se em derrotá-la. É o sonho de suas vidas. É também o sonho que destruirá o pesadelo de quem padece de Esclerose Lateral Amiotrófica.

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