INTRODUÇÃO
O torcicolo muscular congênito é definido como uma fibrose no interior do músculo esternocleidomastóideo que posteriormente acarreta encurtamento e contratura muscular.
CONCEITO
O termo torcicolo deriva das palavras latinas tortus (torto) e collum (pescoço), e é uma deformidade no nível do pescoço ocasionada por um encurtamento do músculo esternocleidomastóideo, que na maioria dos casos provoca uma inclinação da cabeça na direção do lado afetado e rotação da mandíbula em direção ao lado oposto.
ETIOLOGIA
A causa da deformidade é uma fibrose no interior do músculo esternocleidomastóideo que posteriormente acarreta encurtamento e contratura muscular.
Várias etiologias foram sugeridas, e dentre elas destacam-se a pré-natal, a traumática, a infecciosa, a neurogênica, a isquêmica, a hereditária e, mais recentemente, a de uma distrofia muscular congênita com manifestações pré ou pós-natal. A maioria da teorias foi formulada antes de 1896, com exceção da hereditária (Joachmisthal, 1905), da isquêmia secundária à obstrução venosa (Middleton, 1930) da forma localizada de distrofia muscular congênita (Braga Jr. at all, 1988). Ressalta-se, entretanto, o pequeno número de trabalhos experimentais realizados em busca de melhor compreensão da patogenia do torcicolo.
PATOGENIA
Ao exame macroscópico, o "tumor" esternocleidomastóideo é branco e brilhoso, dando a aparência de um fibroma de partes moles. Os estudos microscópicos mostram que ele consiste de tecido fibroso denso, sem evidências de hemorragias ou hemossiderina. Em crianças mais velhas, após o desaparecimento "tumor", tecido excisado do músculo esternocleidomastóideo mostra que ele foi substituído por tecido fibroso, com perda das estriações transversas, vacuolização e rotura da bainhas endomisiais.
Estudos de microscopia eletrônica realizados por Mickelson at all, (1975) mostraram alterações não-específicas sugestivas de degeneração por imobilização, provavelmente secundárias à extensa fibrose no interior do músculo. Nenhuma alteração vascular foi evidenciada.
Estudos mais recentes utilizando técnicas modernas de biópsia muscular com coloração histoquímicas (Sarnat e Morrisy, 1981; Braga Jr. at all, 1988) evidenciaram alterações do tipo miopático caracterizadas principalmente por presença de importante atrofia muscular, tendência a arredondamento das fibras musculares e importante proliferação conjuntiva do tipo endomisial. Na coloração com ATP observou-se, principalmente, uma predominância de fibras do tipo I.
QUADRO CLÍNICO
O quadro clínico do torcicolo é diferente de acordo com a idade do paciente e se o acometimento é unilateral ou bilateral. Por este motivo dividiremos o quadro clinico em recém-nascidos e crianças maiores de um ano de idade.
Recém-Nascidos
O torcicolo nem sempre esta presente, e o exame clinico evidencia apenas uma leve inclinação lateral da cabeça e, mais freqüentemente, rotação pura da cabeça e face na direção oposta ao músculo comprometido. Duas ou três semanas após o nascimento pode desenvolver-se uma massa fusiforme de consistência endurecida e indolor, localizada no interior do músculo esternocleidomastóideo, que na maioria dos casos regride espontaneamente, no espaço de dois a três meses.
Em alguns pacientes, o tumor pode persistir por mais de seis meses e produzir torcicolos até a idade de nove a quinze meses.
Em alguns casos, a deformidade pode ser leve e passar despercebida, até a criança ser capaz de sentar-se ou levantar-se. Porem, em outros pacientes, a deformidade pode ser intensa, com assimetria e achatamento da face no mesmo lado do músculo comprometido e evidente logo após o nascimento.
Em virtude da associação do torcicolo com displasia acetabular e luxação congênita do quadril, cuja a incidência na literatura tem oscilado entre 7% e 40%, torna-se imprescindível a realização de um exame minucioso dos quadris em todas as crianças portadoras de torcicolo muscular congênita. Uma outra associação relativamente freqüente do torcicolo é com o metatarso varo.
Crianças Maiores de Um Ano
Nestes pacientes, a cabeça encontra-se inclinada em direção ao lado comprometido, com a mandíbula e a face rodadas em direção contrárias. A persistência da deformidade provoca achatamento e assimetria da face, com desnivelamento dos olhos e orelhas, que situam-se em um nível inferior ao lado normal. O ombro do lado afetado torna-se elevado, e freqüentemente existe uma escoliose cervicodorsal. A rotação e a inclinação lateral do pescoço estão diminuídas, enquanto que a flexão e a extensão usualmente são normais. No caso raro de torcicolo bilateral o pescoço encontra-se em extensão com a mandíbula elevada na linha média .
Pode ocorrer desconforto ocular em virtude do desequilíbrio dos músculos extra-oculares, ocasionado pela permanente inclinação lateral do pescoço. Existem ainda casos de torcicolo ocular (McGinniti e Johnston, 1987 e Rubim e Wagner, 1986). Torna-se importante, portanto, a avaliação oftalmológica dos pacientes portadores de torcicolo.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Em qualquer recém-nascido com torcicolo, sobretudo se este se acompanhar de um nódulo do músculo esternocleidomastóideo, cabe ao fisioterapeuta ou o pediatra afastar as seguintes hipóteses diagnósticas:
- Linfadenite séptica profunda, dolorosa, fazendo com que o lactente desvie a cabeça para o lado;
- Anomalias de natureza ortopédica, tais como a subluxação da articulação atlantoaxial, a síndrome de Klippel-Feil e a hemivértebra congênita, manifestando-se por flexão da cabeça para o lado.
- Os defeitos da visão, como, por exemplo, a diplopia devido ao estrabismo, resultando em torcicolo de origem ocular.
- Na plagiocefalia, a configuração do crânio da lactente é responsável pela postura assimétrica, sem que exista contratura do músculo esternocleidomastóideo.
- Convém suspeitar de lesão cerebral ou de alguma anomalia do desenvolvimento no lactente jovem que apresenta rotação persistente de pescoço e cabeça para o lado, quer em conseqüência do reflexo tônico cervical assimétrico, quer em virtude da hipotonia ou distonia muscular.
ACHADOS DE IMAGEM
Radiografias
No verdadeiro torcicolo muscular congênito, a coluna cervical é normal, podendo acorrer casos de subluxação cervical C1 - C2 (Slate at all, 1993). Devem ser realizadas radiografias com objetivo de excluir defeitos estruturais da coluna cervical, que podem resultar em torcicolos na infância.
Tomografia Computadorizada
No torcicolo muscular congênito, a tomografia computadorizada demonstra um alargamento do músculo esternocleidomastóideo, situado usualmente em metade inferior, sem calcificação no interior do músculo ou da massa tumoral ( Sty at all, 1987). Outros achados são o achatamento craniofacial ipsilateral, o achatamento contralateral da porção posterior do crânio, além de uma subluxação rotatória de C1 - C2, presente em cerca de 50% dos casos ( Slate at all, 1993). É recomendado em todos os pacientes, principalmente em crianças abaixo de um ano de idade , por possuir a vantagem sobre os raios X de distinguir os diferentes tecidos moles e estruturas ósseas do pescoço. Além disso, é importante na avaliação de casos clinicamente equívocos, na identificação de massas cervicais da criança que se originam de estruturas extramusculares e na detecção de neoplasias primárias do pescoço que podem ocorrer na infância.
Ressonância Nuclear Magnética
Estudos com a ressonância nuclear magnética ( Davids at all, 1993), evidenciaram achados característicos em ambas as imagens obtidas em T1 e T2. Em crianças com menos de três meses de idade, o músculo esternocleidomastóideo estava alargado e possuía um aumento heterogêneo do sinal. Tanto no plano coronal como no transverso, o diâmetro máximo do músculo envolvido era duas a quatro vezes maior que o normal, em pacientes mais velhos, a ressonância produziu sinais consistentes com atrofia e fibrose de todo o músculo comprometido, sem sinais de inflamação ou edema.
ACHADOS LABORATORIAIS E EXAMES COMPLEMENTARES
Os achados laboratoriais no torcicolo muscular congênito freqüentemente são normais. Uma biopsia do músculo deltóide, com técnicas histoquímicas de coloração, esta indicada em pacientes que não respondem ao tratamento conservador ou que desenvolvem torcicolo tardiamente, porque nestes casos o torcicolo pode ser apenas a manifestação local de uma doença sistêmica. A biópsia de ser realizada antes da cirurgia corretiva, visto que se pode restabelecer de forma mais segura quais pacientes terão melhor prognóstico. Assim, pacientes cuja biopsia apresente alterações do tipo miopático ou neurogênico possuem pior prognostico do que aqueles em que a biopsia é normal.
TRATAMENTO
Avaliação
O fisioterapeuta observa o aspecto geral da criança, especialmente a posição de sua cabeça em relação ao tronco e aos membros. O nódulo do esternocleidomastóideo, se presente será palpado, anotando-se o seu tamanho. Para examinar a amplitude de movimentos do pescoço, o fisioterapeuta movimenta passivamente a cabeça do lactente em todos os sentidos; atraindo a atenção do bebe, ele será capaz de avaliar o grau de correção ativa que é possível conseguir. O fisioterapeuta precisa esta atento a qualquer sinal de dor aos movimentos ou à palpação do nódulo. Para avaliar o grau de assimetria facial e craniana, a cabeça do bebê deve ser colocada em posição neutra, com o rosto voltado para cima.
O desenvolvimento geral deve ser examinado rapidamente, anotando-se especialmente qualquer assimetria permanente dos membros ou do tronco, quaisquer reflexos anormais ou assimétricos, como, por exemplo, a assimetria do reflexo tônico do pescoço ou a assimetria dos reflexos de Moro, de Galant ou de preensão. Havendo duvidas quanto ao eventual caráter evolutivo da afecção, o médico da criança deverá ser notificado, afim de submete-la a um exame mais minucioso.
Tratamento Conservador
Em cerca de 80% dos casos, a fibrose não é suficiente para requerer cirurgia corretiva. Em crianças com menos de um ano de idade, o tratamento do torcicolo muscular congênito consiste em exercícios de estiramento muscular ( Emery, 1994). Os exercícios podem ser divididos em duas etapas e devem ser realizados por duas pessoas. Uma das pessoas fixa ambos os ombros e a outra segura a cabeça com uma mão na base do crânio e a outra em torno da mandíbula da criança. A cabeça da criança é então tracionada suavemente. A primeira etapa consiste em tracionar a cabeça da criança com o intuito de afastá-la dos ombros e em seguida realizar uma rotação da cabeça em direção ao lado oposto, de tal forma que a mandíbula aproxime-se do ombro oposto ao músculo lesado. Esta posição deverá ser mantida por 10 segundos. A Segunda etapa consiste em tracionar a cabeça, incliná-la ligeiramente para frente e rodá-la ligeiramente para o lado oposto à lesão. Em seguida, o pescoço da criança é inclinado lateralmente até que a orelha esteja em contato com o ombro. O estiramento é mantido durante 10 segundos. Estes exercícios devem ser repetidos no mínimo cinco vezes, em duas ou mais sessões diárias.
Também deve ser dada orientação para o preparo do quarto do recém-nascido. O berço deve ser colocado junto à parede e a criança colocada de tal forma que para olhar os estímulos tenha que movimentar a cabeça para o lado da lesão, isto é, o lado não lesado deverá estar voltado para a parede, quer esteja em decúbito ventral quer esteja em decúbito dorsal. Dessa forma, pode-se conseguir estiramento do esternocleidomastóideo sem necessidade de cirurgia.
Tratamento Cirúrgico Diversas cirurgias foram preconizadas, desde a mais radical, como a extirpação completa do músculo, até a mais simples, como a secção do músculo em sua porção média. Outras cirurgias recomendadas são o alongamento em "Z" da porção esternal do esternocleidomastóideo, recomendado principalmente em mulheres por não comprometer o aspecto em "V" do pescoço; a liberação esternocleidomastóideo em sua porção proximal ou distal, ou em ambas simultaneamentes. Utilizamos a liberação muscular proximal e distal por acreditarmos que ela dificulta a recidiva do torcicolo, uma vez que o esternocleidomastóideo é liberado tanto de sua origem como de sua inserção. A tendência atual é não utilizar gessos ou aparelhos de imobilização externa no pós-operatório e sim fisioterapia intensiva o mais precocemente possível. O reflexo de correto posicionamento do pescoço deve ser educado através da utilização de um espelho, por um período não inferior a três meses. Em virtude de os pacientes portadores de torcicolo muscular congênito adquirirem o hábito de olhar em plano inclinado, ocasionado pela inclinação lateral do pescoço, considerando esse treinamento de reeducação dos reflexos do correto posicionamento do pescoço como um dos principais fatores para a prevenção de recidivas.
Tratamento Domiciliar
É importante que o fisioterapeuta converse com os pais do lactente por ocasião da primeira consulta, não apenas explicando a finalidade do tratamento, mas também lhes dando algumas dicas de ordem prática sobre como tornar o tratamento em casa o mais agradável possível. Infelizmente, num serviço sobrecarregado de trabalho, o torcicolo é às vezes encarado como queixa de pouca importância; a ansiedade dos familiares pode passar despercebida. Alguns pais sentem-se nervosos quando lidam com o lactente pequeno; ao deixarem o consultório do fisioterapeuta, estão as vezes muito ansiosos no que se refere ao treinamento do músculo esternocleidomastóideo que eles serão obrigados a realizar em domicílio.
Os pais devem ser encorajados a aplicar os exercícios pelo menos três vezes ao dia, ao mesmo tempo brincando e falando com o bebê.
O problema de encaixar o tratamento na rotina diária da casa ficará a critério dos pais. No lactente alimentado com mamadeira, esta pode ser dada de maneira a estimular a rotação ativa da cabeça, mas é preferível não realizar os exercícios de movimentação passiva próximo ao horário das refeições, coso os exercícios lhe provoquem dor ou ansiedade; o bebê logo aprende a associar a alimentação com o desconforto causado pela movimentação passiva.
Imobilização com Capacete e Colete
Este método de imobilização já caiu em desuso na maioria dos serviços, à exceção de alguns poucos casos de acentuada assimetria craniana, quando é interessante melhorar a moldagem do crânio. O valor da imobilização é duvidoso na maioria dos casos de torcicolo. Acredita-se que a imobilização seja capaz de manter a cabeça do lactente na posição corrigida, o que ela consegue fazer até certo ponto, mas é discutível que a correção assim obtida compense o sofrimento causado aos pais; estes se ressentem dessa demonstração aberta da anomalia.
PROGNÓSTICO
O prognóstico do torcicolo muscular congênito pode ser considerado bom, visto que cerca de 80% dos pacientes abaixo de um ano de idade respondem ao tratamento conservador (Morrison e MacEwen, 1982; Emery, 1994). Alguns autores chegam inclusive a questionar a eficácia dos exercícios de estiramento muscular e acreditam que mesmo sem nenhum tratamento a maioria das crianças evolui para correção praticamente completa da deformidade. Portanto, frente a recém-nascidos com torcicolo muscular congênito, devemos tranqüilizar os familiares e informar que em cerca de 80% dos casos o tratamento conservador será suficiente para corrigir a deformidade. Nos 20% restantes que não respondem ao tratamento conservador, em geral os resultados obtidos através da cirurgia corretiva são bons.
Temos adotado como regra para todos os pacientes portadores de torcicolo muscular congênito que não respondem ao tratamento conservador ou que o desenvolvem na infância tardia, a realização de uma biópsia do músculo deltóide com técnicas histoquímicas de coloração, antes da cirurgia corretiva. A utilização de técnicas histoquímicas tem possibilitado a individualização de patologias até então desconhecidas pelos métodos tradicionais de fixação em formol e inclusão em parafina dos fragmentos musculares. A histoquímica e, mais recentemente, a imuno-histoquímica inauguraram uma nova era da patologia muscular. Em pacientes com biopsia de deltóide normal devemos esperar um bom prognóstico, ocorrendo o contrário nos casos com padrão do tipo miopático ou neurogênico. Por outro lado, a biopsia possui ainda a vantagem de estabelecer o tipo de anestésico a ser utilizado, visto que pacientes portadores de algumas formas de miopatias não podem receber anestésicos do tipo volátil sob pena de desenvolverem hipertermia maligna fatal.
Lembramos mais uma vez a importância de um exame cuidadoso dos quadris em todas as crianças portadoras de torcicolo, porque a displasia acetabular e a luxação congênita do quadril não possuem os mesmos índices de bom prognóstico do torcicolo muscular congênito e, quando não diagnosticadas e tratadas precocemente, podem acarretar danos irreparáveis.